domingo, 1 de fevereiro de 2009

:: novo colunista! ::


ÁLBUNS E CARTÕES POSTAIS
por DIOGO SOARES
(exclusivo para o Depredando)


Saudosismo é uma merda. Ítalo Calvino, em Cidades Invisíveis, trata do assunto de maneira ácida e tenaz. Para ele os velhos cartões-postais de uma localidade serviriam como artifício perfeito para uma crítica saudosista, por que ao mesmo tempo que temos as imagens da cidade provinciana, o cartão é capaz de desentranhar a história desses locais e então limpar caminho para uma daquelas famosas frases: "No meu tempo era melhor".

Quais os limites de uma comparação entre álbuns e cartões-postais? De estarte consigo fazer algumas conexões bem simples que recuperam a crítica de Calvino.

Álbuns são compilações de idéias, costumes e reflexões sobre os mais determinados assuntos, mas não são estes assuntos nem resumem tais assuntos. Isso já demonstra o caráter parcial e subjetivo que toda produção artística emana de sua criação. Só que alguns críticos não reconhecem isso e insistem em categorizar diversos álbuns como "datados". Como se um trabalho fosse representante de uma geração inteira de idéias e ideais. Lembro do Fredric Jameson quando falo sobre os estereótipos das décadas que "criamos" através do cinema. "Ahh, isso é tão anos 50", "ahh, esse piano é sessentista". É uma maneira tosca de encaixotarmos a diversidade. Aliás, bem conservadora, né?

Outra forma de conectarmos álbuns e cartões-postais seria compará-los com bandas e cidades. Uma cidade existe no tempo. Poderíamos, no limite, dizer que existe uma cidade a cada momento. Da mesma forma como "você nunca atravessa o mesmo rio duas vezes". As bandas sofrem o mesmo processo de transformação. Em algumas a diferença é nítida e esperada, como quando se alteram formações ou passam por experiências mais radicais (acidentes, guerras, censuras etc). Noutras, a diferença é imperceptível de um trabalho para outro, sendo apenas visível quando se tem a obra completa em mãos. Isso me faz lembrar outra cobrança dos críticos. É explícita a cobrança que uma banda sofre para igualar ou superar seus sucessos anteriores. O artista então deveria se colocar na posição de sempre agradar ao seu público, guardando a regra "o artista está onde o povo está". Se partimos da idéia do artista mudar sempre, porque sempre esquecemos que o público também muda sempre? O artista ao buscar agradar estaria sempre correndo atrás. Um sir inglês uma vez disse: "É melhor estar na moda uma ou duas vezes na vida, do que ficar sempre um passo atrás dela".

O que Calvino nos alerta é que as cidades e seus cartões-postais tem os mesmos nomes, mas são locais regidos por deuses diferentes. Existem em paralelo, mas seu cotidiano é inusitadamente outro. Os cartões, como os álbuns, são obras que necessitam de um espectador ativo. Um espectador que imprima sua marca e traga para dialogar a sua história. Vem então uma terceira, e última, crítica aos críticos. De que maneira se pode categorizar um álbum como "fácil" ou "complexo", "pra baixo" ou "pra festa"? Esta crítica me diz mais sobre o crítico do que sobre a obra. É a mesma coisa com as cidades. É de surpreender a multiplicidade de opiniões sobre o Rio de Janeiro. Não se sabe o cara tá falando sobre o carioca, sobre a prefeitura, sobre o trânsito, sobre as mulheres etc. Enfim, uma miscelânea.

Agora, qual é o papel de um blog que envia uma série de cartões-postais por aí ao vento, ao léu, sem um destinatário definido? É bem mais complexo do que uma agência dos Correios. Será?

* * * * *

Deixo aqui com vocês uma das cidades do Calvino, Maurília. Retirada do livro "Cidades Invisíveis".

"Em Maurília, o viajante é convidado a visitar a cidade ao mesmo tempo em que observa uns velhos cartões-postais ilustrados que mostram como havia sido: a praça idêntica, mas com uma galinha no lugar da estação de ônibus, o coreto no lugar do viaduto, duas moças com sombrinhas brancas no lugar da fábrica de explosivos. Para não decepcionar os habitantes, é necessário que o viajante louve a cidade dos cartões-postais e prefira-a à atual, tomando cuidado, porém, em conter seu pesar em relação às mudanças nos limites de regras bem precisas: reconhecendo que a magnificência e a prosperidade da Maurília metrópole, se comparada com a velha Maurília provinciana, não restituem uma certa graça perdida, a qual, todavia, só agora pode ser apreciada através dos velhos cartões-postais, enquanto antes, em presença da Maurília provinciana, não se via absolutamente nada de gracioso, e ver-se-ia ainda menos hoje em dia, se Maurília tivesse permanecido como antes, e que, de qualquer modo, a metrópole tem este atrativo adicional – que mediante o que se tornou pode-se recordar com saudades daquilo que foi.

Evitem dizer que algumas vezes cidades diferentes sucedem-se no mesmo solo e com o mesmo nome, nascem e morrem sem se conhecer, incomunicáveis entre si. Às vezes, os nomes dos habitantes permanecem iguais, e o sotaque das vozes, e até mesmo os traços dos rostos; mas os deuses que vivem com os nomes e nos solos foram embora sem avisar e em seus lugares acomodaram-se deuses estranhos. É inútil querer saber se estes são melhores do que os antigos, dado que não existe nenhuma relação entre eles, da mesma forma que os velhos cartões-postais não representam a Maurília do passado, mas uma outra cidade que por acaso também se chamava Maurília."


(Ítalo Calvino - As Cidades Invisíveis: As Cidades e a Memória, 5)

Nenhum comentário: