quinta-feira, 26 de agosto de 2010

:: Um texto inspirador! ::



"...em plena era da cultura industrializada, faz-se necessário acentuar o que vale a pena."

(ARTHUR NESTROVSKI)


"Jornalismo cultural", a rigor, é uma contradição de termos. A palavra "jornalismo" vem do latim diurnalis, que significa "do dia", menos no sentido de diurno do que de diário, cotidiano. "Cultural" é um termo figurado, por analogia ao cultivo da terra. Jornalismo é do dia-a-dia; cultural, de longa duração. O jornalismo reage rapidamente aos acidentes; a cultura define a identidade de um grupo, ou de uma sociedade, e só se transforma aos poucos. O jornalismo cultural existe nessa tensão entre o contingente e o permanente, com a balança quase nunca no meio.

Para continuar na veia etimológica: "crítica" vem de uma palavra grega, krinein, que quer dizer "quebrar". A mesma palavra está na raiz de "crise", por exemplo. E a crítica, nalguma medida, faz isso mesmo: quebra uma obra em pedaços, ponde em crise a idéia que se fazia dela. (...) [Ao crítico] cabe identificar o que compõe uma obra; questionar, onde necessário, nossos hábitos de compreensão; e situar suas interpretações no contexto mais amplo da cultura, sem perder o senso de urgência. Isso vale tanto para o crítico mais geral e conceitual quanto para o intérprete mais detalhado das obras. Vale para qualquer um que escreva sobre cultura num jornal - incluindo, naturalmente, o crítico de música.

A crítica musical nasce no início do século 19. Não seria exagero afirmar que surge para dar conta da música de Beethoven. Foi a dificuldade de compreender suas últimas obras - dificuldade que permanece até hoje e não vai deixar de existir nunca, porque faz parte do que elas têm a dizer - que levou um autor como E. T. A. Hoffmann a redigir os primeiros ensaios de interpretação musical. A compreensão, portanto - não o "gosto" -, é o ponto de partida e chegada da crítica.

A crítica expressa, sem dúvida, alguma coisa de gosto pessoal, tanto quanto guarda (ou deveria guardar) algo de objetivo e informativo também. Mas ela é mais do que opinião e reportagem e mais do que a soma dos dois. O crítico não está só defendendo uma escolha; o que interessa é a natureza dessa escolha. A missão da crítica implica construir consenso sobre uma obra, um intérprete, um compositor. Mas não qualquer consenso. O caráter das respostas põe em xeque mais do que opinião que se tem sobre determinada obra, o que não seria pouco.

Contra a instrumentalização da cultura, que parece não ter mais limite, a crítica tem uma função de "desintoxicação", como diz Geoffrey Hartman. Gosto não só se discute, como é importante que seja discutido. Discutir uma obra de arte, pensando bem, não é mais nem menos pessoal do que debater questões da política; e ninguém sugere que "política não se discute" (pelo menos não numa sociedade democrática).

Essa lição é antiga: está na Crítica do Juízo de Kant, escrita em fins do século 18, nas raízes da era moderna. Para que isso não seja mal entendido: não é preciso que a crítica musical envolva temas políticos explícitos para que, de qualquer modo, se abra para um contexto mais amplo, envolvendo noções como liberdade, expressão e individualidade. Ela se abre, precisamente, para a cultura. 


Ninguém pensa em tudo isso enquanto escuta Bach ou Mozart; e é improvável que mesmo o crítico mais autoconsciente se lembre com clareza desses argumentos ao mesmo tempo que escreve sobre a Missa em mim menor ou A Flauta Mágica. Mas também não se esquece inteiramente deles. Exercer a crítica exige pelo menos uma tentativa de saber onde se está. No nosso caso, estamos todos no Brasil, o que dá à questão outras conotações. 

Informação já é formação, num país tão pobre de escolas. Escolas de música, então, ou música nas escolas, pior. E num momento como este, em que a universidade parece ter perdido boa parte do engajamento que já teve, o jornalismo cultural pode, quem sabe, assumir um papel mais relevante. Desde que não perca o sentido de contexto, a crítica pode vestir, também, o manto da pedagogia. Simplesmente situar um leitor na floresta de nomes e correntes já seria uma ajuda considerável. 

O que não é tão fácil - nem para o leitor, nem para o crítico - é conjugar o aprendizado mais enciclopédico com a experiência direta da música. Duzentos anos de modernismo devem ter servido para nos ensinar que não existe relação direta com obra nenhuma, como não existe relação imediata e transparente com nada neste mundo. Mas a ilusão de imediatez existe; e nalguma medida tem de ser preservada. A crítica pode auxiliar na divulgação e organização do conhecimento musical. Mas não existe "conhecimento" musical divorciado da escuta. Fazer escutar a música: fazer da música algo de vivo, ou mais vivo: reinventar a música, em resposta ao que ela nos dá - tudo isso é um ideal da crítica. Como todo ideal, só se realiza imperfeitamente; mas nem por isso deve ser deixado de lado quando se fala de crítica, música e cultura...










in: ARTHUR NESTROVSKI.
Notas Musicais: Do Barroco Ao Jazz
Ed. Publifolha
, 2000, Pgs. 10-12.

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