segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Milênios de Uso Medicinal; Décadas de Proibicionismo Autoritário


“Maconha serve de remédio desde sempre. O primeiro tratado de ervas medicinais que se conhece, o Pen Tsao, concebido há 4.700 anos na China, já inclui referência destacada à cannabis, e há registros de usos médicos em praticamente todas as civilizações antigas. Extrato de cannabis era remédio na Índia desde a Antiguidade e, quando os ingleses chegaram lá, logo descobriram suas virtudes medicinais. Por isso, o Império Britânico exportava extrato de cannabis, que era vendido em farmácias do mundo todo, e provavelmente foi o anestésico mais usado contra dor de cabeça até o século XIX, quando a aspirina foi inventada.” 
“No México, faz séculos que é usada por curandeiras nas comunidades rurais, como parte importante da tradicional medicina à base de ervas, indicada para várias doenças, entre elas glaucoma e bronquite.” 
“A planta foi [na história da humanidade, até o alvorescer do século XX e do proibicionismo fundamentalista…] também importantíssima na economia mundial, já que a fibra de seu caule, o cânhamo, era a principal matéria-prima de tecidos e papéis. Tecidos de cânhamos foram empregados nas telas dos pintores da Renascença, nas velas dos barcos das Grandes Navegações e no papel da Declaração de Direitos que fundou os Estados Unidos da América.” 
“Era, talvez até mais que o trigo, uma planta em relação simbiótica com a humanidade, cultivada por muitos povos e utilizada para os mais diversos fins. Era também uma planta em coevolução com a humanidade, cujos genes refletiam as necessidades humanas, porque eram selecionados pelo homem.” 
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 No século XX, o mundo foi planejado para as indústrias, não para as pessoas. As cidades foram construídas para dar espaço para o maior número possível de carros - e, como resultado, o espaço público nunca foi tão sujo, barulhento e perigoso. O modelo de produção e de ocupação passou a consumir recursos naturais e gerar resíduos num ritmo alucinante - o que levou o mundo a um colapso ambiental e está fazendo o clima mudar. E a política tornou-se refém das empresas, que financiam as campanhas - criando uma sensação global de que as pessoas deixaram de ser representadas.
Por causa desses efeitos colaterais, a fé cega na indústria e na tecnologia está vivendo uma grande crise. A crença de que a indústria é sempre superior à natureza acabou resultando na destruição da natureza e no poder excessivo da indústria. No mundo todo, há sinais de que essa visão se esgotou, de que teremos de voltar a valorizar a natureza. 
A proibição ultrarradical da canábis é típica do século XX - uma relíquia de um modo antigo de pensar, da qual ainda não conseguimos nos livrar. No entanto, cada dia que passa o absurdo dessa política se revela mais. É por isso que o mundo está entrando numa onda de revolta contra essa ideologia - uma onda que se manifesta nas marcas da maconha, em protestos generalizados no mundo todo, em brigas judiciais, na crescente polarização do debate, que fica cada vez mais irritado.

Esta onda não vai parar de crescer, porque ela se sustenta numa constatação clara: a de que a canábis não é pior que seus concorrentes industriais. Ela causa menos danos mentais e menos dependência que os remédios psicoativos da indústria farmacêutica - antidepressivos, ansiolíticos, soníferos, anestésicos. Gera menos morte e violência que as bebidas alcóolicas industrializadas. E, além disso, tem óbvias vantagens econômicas, ambientais, sociais." (260-61)
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"Do ponto de vista dos riscos envolvidos, o álcool é imensamente mais perigoso do que a maconha, sem dúvida alguma. Enquanto a maconha não mata, não importa a dose, o álcool tem uma margem pequena entre a dose necessária para causar o efeito desejado e a dose suficiente para colocar em risco as funções vitais do corpo. Álcool demais faz com que as áreas do cérebro responsáveis pela respiração e pela consciência se desliguem, o que pode provocar desmaios. Não é incomum que usuários morram afogados no próprio vômito - aliás, o vômito é uma forma do organismo se defender de uma dose venenosa da substância. Álcool causa mais dependência e a síndrome de abstinência ligada a ele é muito mais perigosa, podendo até matar. A substância é bastante tóxica às células humanas e está associada a vários tipos de câncer. Já a maconha, justamente por seu apenas um 'modulador', causa efeitos sutis, que não matam células nem influem no funcionamento dos órgãos vitais.
 Além disso, álcool gera violência e comportamento irresponsável. Uma pesquisa americana de 2003 mostrou que a chance de um homem agredir sua esposa aumenta 8 vezes quando ele está alcoolizado. No Reino Unido, o governo estima que o álcool seja a causa principal de metade dos crimes violentos e de 70% das emergências e dos internamentos por acidentes. Maconha não gera violência. (...) Em 2009, três autores americanos publicaram um livro instigante (FOX, ARMENTANO, TVERT: Marijuana is Safer: So Why Are We Driving People To Drink?) no qual se perguntam se nossa sociedade, ao demonizar a maconha, não está acidentalmente aumentado o consumo de álcool e, em consequência, as taxas de mortes violentas e por intoxicação. "Legalizar a maconha levaria a uma redução da violência doméstica e comunitária. Nós enxergamos um futuro no qual a canábis não apenas seja legal, mas conselheiros domésticos achem apropriado aconselhar maridos abusivos a reduzir ou eliminar o consumo de álcool e consumir maconha como alternativa", diz o livro." (233-234).
 "No Brasil, os grandes fabricantes de cerveja estão entre os maiores investidores em publicidade e, portanto, têm imensa influência sobre a mídia (segundo o Ibope, a Ambev é a quarta maior anunciante do país, à frente do Bradesco, da Volkswagen e da Vivo). Eles estão investindo uma baba na Copa do Mundo de 2014, uma ótima estratégia para associar o álcool à saúde e à diversão e fisgar usuários jovens. Isso, em longo prazo, terá impacto brutal no número de mortes no trânsito, agressões e doenças crônicas. (...) É absurdo que uma droga tão perigosa quanto o álcool tenha tanta liberdade para fazer publicidade claramente focada em jovens, sem controle algum." (262)
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"Pelo que se sabe, o fator mais determinante é 'cultura'. Cultura é o conjunto dos valores, dos anseios, das atitudes de uma sociedade. Hoje, de acordo com nosso sistema, a lei está contra a canábis. Mas a cultura, que é muito mais importante que a lei, está a favor. A tal 'cultura canábica' está por cima, bombando em festas, manifestações de rua e editoriais de jornais. Cada dia que passa, ela fica mais orgulhosa de si própria e ganha mais adeptos. 
Curioso é que a cultura pró-canábica se alimenta das leis anti-canábicas. Quanto mais nosso sistema é injusto, ineficaz, contraprodutivo, violento, estúpido, mais os defensores da canábis se enchem de um senso de indignação e tornam-se orgulhosos de sua causa." (265-266)
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"...só mesmo os utópicos fundamentalistas religiosos podem acreditar em livrar o mundo delas [drogas]. (...) Graças à proibição ultrarradical, atualmente as drogas matam mais, machucam mais e causam mais dano social que em qualquer época da história." (250) (...) "Hoje nossa sociedade atribuiu aos drogofóbicos o trabalho de proteger a sociedade das drogas. (...) Precisamos tirar os histéricos do poder, se queremos alguma racionalidade no mundo." (p. 264)
DENIS RUSSO BURGIERMAN, ex-diretor de redação da revista Superinteressante (Editora Abril),  em seu livro "O fim da Guerra: A Maconha e a Criação de um Novo Sistema Para Lidar com as Drogas" (Editora Leya, 2011).  

Um comentário:

claudia lulkin disse...

O livro O Fim da Guerra é excelente.
Mostra caminhos...
É muito bem escrito, com simplicidade e bom humor!
É FUNDAMENTO para o momento em que vivemos....chega de hipocrisia e de HORROR praticado contra tant@s cidadãos....contra jovens....