terça-feira, 27 de março de 2012

Da caixinha de memórias de Patti Smith: o 1º encontro com Rimbaud, um show dos Rolling Stones e o poeta vida-podreira Jim Carroll



Patti Smith abre sua caixinha de souvenirs e nos conta em fina prosa lá no Mate-me Por Favor (A História Sem Censura Do Punk):


O PRIMEIRO ENCONTRO COM RIMBAUD 

“A Poet makes himself a visionary through a long, boundless and systematized
disorganization of all the senses.”
Rimbaud 



Eu estava trabalhando numa fábrica e inspecionando produtos pra bebê, e era minha hora de almoço. Um cara passava por lá com uma carrocinha que tinham aqueles maravilhosos sanduíches de linguiça, e fiquei muito a fim de um. Eles custavam mais ou menos um dólar e quarenta e cinco. Fiquei muito afim de um, mas acontece que o cara só trazia dois por dia. E as duas senhoras que mandavam na fábrica, Stella Dragon e Dotty Hook, pegaram os dois.

Aí não havia nenhuma outra coisa que eu quisesse. Você fica obcecado  por uns certos sabores. Estava com a minha boca salivando pelo tal sanduíche de lingüiça quentinho, então fiquei na maior depressão. Daí caminhei ao longo dos trilhos da ferrovia até uma pequena livraria. Fiquei zanzando por lá, procurando alguma coisa pra ler, e vi Illuminations. Uma edição de bolso barata das Iluminuras do Rimbaud, sabe? Quer dizer, todo garoto teve uma. Tem aquela foto granulada de Rimbaud, e achei que ele tinha um ar muito elegante. Rimbaud parecia muito genial. Peguei o livro no ato. Nem sabia do que se tratava, simplesmente achei que Rimbaud era um nome elegante. Provavelmente chamei-o de "Rimbawd" e achei que ele era muito cool.

Daí voltei pra fábrica. E fiquei lendo o livro. Era em francês de um lado e em inglês do outro, e isso quase custou meu emprego porque Dotty Hook viu que eu estava lendo alguma coisa que tinha língua estrangeira e disse: "Pra que você está lendo coisa estrangeira?!?"

Eu disse: "Não é estrangeira."

Ela disse: "É estrangeira e é comunista. Qualquer coisa estrangeira é comunista."

Ela disse isso tão alto que todo mundo pensou que eu estivesse lendo O Manifesto Comunista [de Marx & Engels] ou coisa parecida. Todos se levantaram, foi um caos completo, é claro, e saí da fábrica muito puta da cara. Fui pra casa e, é claro, dei ao livro a maior importância antes mesmo de lê-lo. Me apaixonei de verdade por ele. Foi por aquele encantador Filho de Pan que me apaixonei... Porque ele era tão sexy.



A MAGNÉTICA PRESENÇA DE MICK JAGGER NO PALCO



O que me fez ter esperança no futuro da poesia foi o concerto dos Rolling Stones que vi no Madison Square Garden. Jagger estava cansado e todo detonado. Era uma terça-feira, ele tinha feito dois shows e estava de fato à beira de um colapso - mas o tipo de colapso que transcende pra mágica.

Jagger estava tão cansado que precisou da energia da platéia. Não foi um roqueiro naquela noite. Ele esteve mais perto de ser um poeta do que jamais estivera, porque estava tão cansado que mal conseguia cantar. Adoro a música dos Rolling Stones, mas o principal não foi a música, mas a performance - a performance visceral. Foi a performance visceral dele, o ritmo, a movimentação, a fala - ele estava muito cansado, dizia coisas do tipo: "Very warm here/ warm warm warm / It's very hot here / hot, hot / New York, New York, New York / band, bang, bang." (Muito quente aqui / quente quente quente / faz muito calor aqui / calor calor / Nova York Nova York Nova York / banda, bang, bang.)

Quer dizer, nada daquela coisa foi genial - foi a presença e a força dele que mantiveram a audiência na palma de sua mão. Havia eletricidade. Se os Rolling Stones tivessem ido embora e deixado Mick Jagger sozinho, ele teria sido maravilhoso como qualquer poeta naquela noite. Teria falado alguma de suas melhores letras e mantido a platéia magnetizada.

E aquilo me entusiasmou tanto que quase me despedacei, porque vi todo o futuro da poesia. Vi e senti de verdade, fiquei tão empolgada que mal cabia em mim, e isto me deu força pra seguir em frente. [...] Apresentação física numa performance é mais importante do que o que você está dizendo. Qualidade dá bom resultado, é claro, mas se a sua qualidade intelectual é alta, seu amor pela platéia é evidente, e você tem uma forte presença física, pode fazer qualquer coisa impunemente.


SEDUZIR PARA UMA CONSCIÊNCIA DE MASSA

Comecei a fazer sucesso escrevendo aqueles poemas longos, quase poemas de rock & roll. E gostava de apresentá-los, mas percebi que, embora fossem maravilhosos, não eram grande coisa no papel. Não estou querendo dizer que os renego, mas existe um certo tipo de poesia que é poesia de performance. É como os índios americanos, que não escreviam poesia conscientemente. Faziam cânticos, faziam linguagem ritual - e a linguagem do ritual é a linguagem do momento.

Mas, na medida em que ficavam congelados num pedaço de papel - não eram inspiradores. Você pode fazer o que quiser, contanto que seja um grande performer, sabe como é, pode repetir uma palavra mais e mais, contanto que seja um performer fantástico. Quer dizer, Billy Graham é um grande performer, muito embora seja um cagalhão. Adolf Hitler era um performer fantástico. Era da magia negra. E eu aprendi daí. Você pode seduzir as pessoas pra uma consciência de massa.

Assim, escrevo pra ter alguém. Há um motivo por trás de tudo que escrevo. Escrevo do mesmo jeito que me apresento. Quer dizer, você só se apresenta porque quer que as pessoas se apaixonem por você. Quer que elas reajam a você.

A outra coisa é que, através da performance, alcanço certos estados nos quais sinto minha mente muito aberta - tão cheia de luz, enorme, grande como o Empire State Building -, e, se consigo desenvolver uma comunicação com o público, um grupo de pessoas, quando minha mente está tão grande e receptiva, imagine a energia, a inteligência e todas as coisas que posso roubar delas.


JIM CARROLL É UM DOS VERDADEIROS POETAS DA AMÉRICA

Jim Carroll (3º da esq. pra direita), autor de The Basketball Diaries, 
adaptado pro cinema como Diários de um Adolescente

Os poetas de St. Mark's são muito insípidos, são umas fraudes, eles escrevem: "Hoje às nove e quinze tomei um pico de speed com Brigid..." São espertos o suficiente pra colocar isso num poema, mas se Jim Carroll entra doidão na igreja e vomita, isto não é um poema pra eles - não é cool. 

Tudo bem se você joga com isso na sua poesia, mas se está realmente nessa, aí já é outra coisa - não é algo que eles queiram encarar. Jim Carroll era a chance do St. Mark's Poetry Project ter algo real lá. Jim Carroll é um dos verdadeiros poetas da América. Quer dizer, é um poeta de verdade. É um junkie. É bissexual. Foi comido por todos os gênios masculinos e femininos da América. Foi comido por toda essa gente. Ele vive por inteiro. Vive uma vida repugnante. Às vezes você tem que tirá-lo de uma sarjeta. Ele esteve na prisão. É um fodido completo. Mas qual o grande poeta que não foi? Pra mim é incrível que aos 23 anos Jim Carroll tenha escrito todos os seus melhores poemas - com a mesma idade que Rimbaud escreveu os dele. Ele tem a mesma excelência intelectual e altivez de Rimbaud. 

Mas o baniram porque ele fodeu com tudo. Não apareceu pra sua leitura de poesia. Estava na cadeia. Bom pra ele. Disseram: "Oh, bem, não podemos mais pedir pra ele ler poesias." Foi ridículo.

tudo isso e muito mais lá no...



Mate-me Por Favor (Uma História Sem Censura do Punk) 
Legs McNeil e Gillian McCain (org.)
Editora L& PM


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Discografia Completa de Patti Smith [1975-2004] - mp3 de 192kps
Documentário "Patti Smith: Dream of Life" (2008), de Steven Sebring

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Patti Smith: Um Rimbaud de saias poetizando o rock'n'roll

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