quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

Depredando o Neoliberalismo - Parte II: O Público Que Vai Privada Abaixo... (Refletindo com Foucault, Todorov, Bourdieu, Arendt, Viveiros de Castro...)



O NEOLIBERALISMO E A PRIVATIZAÇÃO GENERALIZADA
DOS SERVIÇOS PÚBLICOS


É bem conhecido o estratagema ideológico de mascarar realidades espúrias detrás de belas palavras de tonalidade positiva: ao invés de falar em demissões em massa, fala-se em “reestruração das empresas”; para não se referir aos brutais cortes de recursos destinados aos serviços públicos essenciais, refere-se à “redução dos gastos sociais”; para justificar as cada vez mais célebres “medidas de austeridade”, que sufocam atualmente as populações de países como a Espanha e a Grécia, fala-se na necessidade de “manter a confiança dos investidores”. São alguns dos muitos exemplos desta “retórica eufemística que corre hoje nos mercados financeiros” (BORDIEU: 1998, p. 65) e domina o dialeto economiquês. O uso que o neoliberalismo faz da palavra “Liberdade” também fede a abuso, o que Todorov soube bem destrinchar em sua obra mais recente: “Não sabemos que os tiranos do passado invocavam regularmente a liberdade? (…) Somos verdadeiramente a favor de toda liberdade, incondicionalmente, inclusive a da raposa no galinheiro?” (TODOROV)

Através de discursos repletos de eufemismos e termos técnicos, que escondem realidades sujas, os apologistas do neoliberalismo põe a “estabilidade dos mercados financeiros” em uma posição privilegiada em relação às necessidades mais urgentes das populações. O que ocorre de fato sob a vigência do neoliberalismo é a “privatização generalizada dos serviços públicos, a redução das despesas públicas e sociais, (…) o agravamento extraordinário das diferenças entre as rendas, o desaparecimento progressivo dos universos autônomos de produção cultural em virtude da intrusão crescente das considerações comerciais...” (BOURDIEU: Contrafogos 1, p. 143)

Será que não estaria em jogo, com o termo “globalização”, um procedimento semelhante de eufemismo, mascaramento e enganação? Não estaríamos diante de um processo que consiste em “unificar para melhor dominar”, como diz Bourdieu? Afinal de contas, esta tal de globalização será algo além do processo de imposição das doutrinas neoliberais em escala planetária? Não esconderá uma divisão internacional do trabalho que prossegue, tal qual nos dias do colonialismo, a favorecer os países capitalistas avançados em detrimento dos países por eles explorados? “Em suma”, afirma Bordieu, “a globalização não é uma homogeneização, mas, ao contrário, é a extensão do domínio de um pequeno número de nações dominantes sobre o conjunto das praças financeiras nacionais.” (BOURDIEU, idem, p. 54).

“'Globalização é uma palavra que, funcional como uma senha e uma palavra de ordem, é com efeito a máscara justificadora de uma política que visa universalizar os interesses e a tradição particular das potências econômica e politicamente dominantes, sobretudo os Estados Unidos, e estender ao conjunto do mundo o modelo econômico e cultural mais favorável a essas potências apresentando-o ao mesmo tempo como norma, um tem-que-ser e um fatalismo, destino universal, de modo a obter a adesão ou, pelo menos, resignação universais. (…) A globalização econômica é o produto de uma política implementada para fins específicos, a saber, a liberalização do comércio (trade liberalization), isto é, a eliminação de todas as regulações nacionais que freiam as empresas e seus investimentos. (…) Assim, nas economias emergentes, o desaparecimento das proteções destina à ruína as empresas nacionais e, para países como a Coréia do Sul, a Tailândia, a Indonésia ou o Brasil, a supressão de todos os obstáculos ao investimento estrangeiro acarreta a ruína das empresas locais, adquiridas frequentemente por preços ridículos pelas multinacionais. (…) As diretrizes da OMC sobre as políticas de concorrência e de mercado público teriam por efeito, ao instaurar uma concorrência 'de armas iguais' entre as grandes multinacionais e os pequenos produtores nacionais, provocar o desaparecimento maciço destes últimos.” (BOURDIEU: 2001, pg. 90 e 101-102.)
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PRIVATIZAÇÕES & ESTADO POLICIAL

“Há hoje um sentimento amplamente difundido na Esquerda de que o neoliberalismo efetivamente enfraqueceu o poder do Estado nas sociedades ocidentais modernas, e que é chegada a hora de abandonarmos a postura antiestatista e antitotalitarista associada à crítica do stalinismo e ao autonomismo utópico dos anos 60 e 70. Enfim, é tempo de constatarmos, com não pequeno constrangimento, que talvez tenhamos sido cúmplices do Mercado em sua luta para diminuir e subjugar o Estado, última barreira protetora dos direitos do povo contra a sanha do Capital. (…) Não posso deixar de dizer que não acredito nem um pouquinho nisso. A ideia de que o capitalismo globalizado acarretou uma diminuição do poder do Estado parece-me inverossímil. À parte o fato de que foi e continua a ser preciso um gigantesco aparelho regulador e interventor, administrado pelo Estado, para produzir a 'desregulação da economia', jamais o Estado esteve tão presente, tão perto da vida cotidiana. A Grã-Bretanha, por exemplo, com suas câmeras de vigilância penduradas por toda parte, seus agentes secretos infiltrados nos movimentos civis, sua polícia neo-orwelliana, transformou-se em um espaço de autoespionagem universal e perpétua; nos EUA, a Guerra contra o Terror justificou uma invasão dos espaços privados e uma violação das liberdades públicas como jamais se viu na história das democracias modernas, o que tornou a paranóia o modo de produção dominante da subjetividade nativa. E no mundo inteiro, vemos o aparelho jurídico-policial dos Estados nacionais prestando seu apoio solícito aos esforços das corporações transnacionais para cercar definitivamente os commons da noosfera e esmagar com a máxima violência qualquer resistência à bioeconomia política do Capital.” (VIVEIROS DE CASTRO: Posfácio à Arqueologia da Violência, de Pierre Clastres, 2004, p. 325)

Michel Foucault, que investigou o
neoliberalismo em "O Nascimento
da Biopolítica"
(1979)
Uma certa “fobia ao Estado” parece animar as doutrinas liberais e similares, como sugere Foucault: “o que é posto em questão atualmente e a partir de horizontes extremamente numerosos é quase sempre o Estado: o Estado e seu crescimento sem fim, o Estado e sua onipresença, o Estado e seu desenvolvimento burocrático, o Estado com os germes de fascismo que ele comporta, o Estado e sua violência intrínseca sob seu paternalismo providencial.” (FOUCAULT: 2008, p. 259) Os espectros temíveis dos Estados totalitários do século XX – como a Alemanha do III Reich e a União Soviética sob Stalin estariam na raiz dessa “guinada neoliberal”?

Foucault esclarece que o totalitarismo não lhe parece decorrer de uma “elefantíase” do Estado, mas sim do Partido: “esse Estado que podemos dizer totalitário, longe de ser caracterizado pela intensificação e pela extensão endógenas dos mecanismos de Estado, (…) constitui, ao contrário, uma atenuação, uma subordinação da autonomia do Estado, em relação a algo diferente: o partido. (…) É essa governamentalidade de partido que está na origem histórica de algo como os regimes totalitaristas, de algo como o nazismo, como o fascismo, como o stalinismo.” (idem, p. 264)

O totalitarismo, pois, equivaleria a um “sequestro” do Estado por um partido que pretende reinar sem oposição - donde os “expurgos” do stalinismo, com tantos opositores enviados às gulags, e a tentativa do Partido Nazi alemão de impor a “purificação racial” através do genocídio sistemático. O totalitarismo como imposição de uma homogeneidade a uma massa, como máquina de varrer gente para fora do território com a terrível vassoura da limpeza étnica, a imposição da morte em escala industrial através de “conquistas tecnológicas” como as câmeras-de-gás que vomitam Zyklon B...

Já o avanço da aplicação de medidas neoliberais dá a impressão de que o Estado estaria cada vez mais limitado em sua esfera de ação: tudo o que um dia foi público vai passando por um inexorável processo de privatização. Outrora responsável por serviços essenciais à população nas áreas de saúde, alimentação, moradia e transportes, o Estado privatizador que o neo-liberalismo prega como ideal tende a conservar apenas funções policiais e militares, como se sua função fosse somente a defesa, a vigilância, a segurança. Nisto, este Estado é fidelíssimo à tradição política burguesa que, segundo Hannah Arendt, “sempre considerou instituições políticas exclusivamente como um instrumento para a proteção da propriedade individual” (The Origins of Totalitarianism, p. 199).

“A filosofia neoliberal pretende apagar todos os vestígios do Estado social como obstáculos ao funcionamento harmonioso dos mercados” (BOURDIEU: 1998, p. 84). O neoliberalismo, com sua sanha de privatizações, procura “enxugar” cada vez mais aquelas funções estatais típicas do welfare state e realiza um “corte, absolutamente injustificável, entre o econômico e o social, que define o economicismo” (idem, p. 70). “O programa neoliberal tende assim a favorecer globalmente a ruptura entre a economia e as realidades sociais.” (idem, p. 138).

Defender o Estado, diz Bourdieu, não equivale a ser reacionário, defensor de um arcaísmo: o Estado, “depositário de todos os valores universais associados à ideia de público(idem, p. 145), têm agido “rebaixando sua dignidade estatutária ao multiplicar as reverências diante dos patrões de multinacionais, ou ao competir com sorrisos e acenos coniventes diante dos Bill Gates...” (idem, p. 145)

O Estado, segundo a interpretação de Bourdieu, possui duas mãos: a esquerda, devotada às necessidades sociais como habitação, saúde, educação, e a direita, onde concentra-se a burocracia, a polícia, o exército. Nos EUA, por exemplo, é fácil constatar que a “mão direita” do Estado cresceu desproporcionalmente, enquanto a mão esquerda foi sendo vendida, sucateada, privatizada, relegada a um status secundário, transformada em mercadoria. O Público foi privada abaixo.


País de recordes, alguns deles não tão “gloriosos” quanto aqueles que decoram os Guiness Books que os americanos adoram consumir, os EUA não é somente o maior poluidor atmosférico, o mais sedento consumidor de petróleo e a nação do planeta com o mais alto orçamento militar (“600 bilhões de dólares por ano”, segundo Todorov [2012: pg. 69]). Em 2008, como relata Ziegler, “pela primeira vez na História as defesas com armamento dos países membros da ONU ultrapassaram um trilhão de dólares por ano. Os Estados Unidos gastaram com armas 41% desse montante (a China, segunda potência militar mundial, 11%).” (ZIEGLER: 2011, p. 12).

Este imenso poderio militar é posto em ação em cruzadas no exterior, justificadas como guerras de legítima defesa (como a do Afeganistão, que seria uma retaliação contra o atentado do 11 de Setembro) e “guerras preventivas” (como a do Iraque, que supostamente livraria o mundo de um regime que abrigava armas em destruição em massa...). “Os valores democráticos, brandidos pelos países ocidentais como motivo da intervenção, foram percebidos, pela população de outros países, como a confortável camuflagem de intenções inconfessáveis.” (TODOROV: 2012, p. 63).

 É nos Estados Unidos, que possui 5% da população mundial, que se concentra a maior população carcerária, cerca de 25% de todos os encarcerados da Terra, o que denota “um Estado repressor, policialesco”: “No estado da Califórnia, um dos mais ricos dos EUA, o orçamento das prisões é superior, desde 1994, ao orçamento de todas as universidades reunidas. Os negros do gueto de Chicago só conhecem, do Estado, o policial, o juiz, o carcereiro e o parole officer...” (BORDIEU: 1998, p. 46)

O fato do cowboy from hell George W. Bush ter podido apontar o presidente da Goldman Sachs, Hank Paulson, um dos mais bem-pagos CEOs de Wall Street, como seu Ministro do Tesouro, em 2006, é bem sintomático da infiltração insidiosa e disseminada do big business no próprio coração do capitalismo neoliberal. Um sistema que, longe de globalizar o acesso gratuito e universal à alimentação, à saúde e à educação, é “globalizador” de sua tara economicista e de sua mania obsessiva de concentrar riqueza e produzir miséria.

Dois anos depois da Goldman Sachs ganhar da bandeja de Bush o Tesouro, uma crise monumental estoura nos EUA de 2008: falências colossais (como da Lehman Brothers e da Merryll-Lynch, esta última comprada pelo Bank of America...) e símbolos do capitalismo americano indo à beira da falência (a General Motors quase vai à bancarrota, só sobrevivendo com os bilhões pagos pelo Salvador, o Estado que gere o dinheiro recolhido dos taxpayers...).

A inescrupulosidade, ineficiência e a irresponsabilidade do capitalismo comercial corporativo causou grave crise social e os responsáveis pelo desastre, ao invés da cadeia ou da demissão, prosseguiram com suas fortunas intactas:“The men who destroyed their own companies and plunged the world into crisis walked away from the wreckage with their fortunes intact” (Inside Job, documentário de Charles Ferguson). O Estado, nesse caso, serviu como aquele que tira do povo (pobres dos cidadãos, cujo suado dinheirinho foi todo transferido para o “salvamento” urgencial da Merryll-Lynch e da GM...) e entregue logo aos capitalistas que causaram a desgraça.

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