terça-feira, 4 de dezembro de 2012

Depredando o Neoliberalismo, Parte III: Sweatshops, Precariado, Mega-Corporações... "Os escravagistas não morreram! Viraram especuladores da Bolsa..."

Manifestação em Porto (Portugal)

           
“Os escravagistas não morreram. Eles se transformaram em especuladores da bolsa.”

OULAI SIENE
, ministro da Justiça da Costa do Marfim,
em Durban 2001
(in: ZIEGLER, Ódio ao Ocidente: Ed. Cortez, 2011, pg. 98)



Um dos maiores escândalos do capitalismo neoliberal atual são os chamados sweatshops [Wikipédia]: fábricas que as mega-corporações instalam longe dos grandes centros de consumo e onde a escravidão, o trabalho infantil e os salários de miséria são a realidade cotidiana. Nas apinhadas usinas de suor, milhares de trabalhadores são esmagados dia-a-dia debaixo das condições mais inaceitáveis, mantidos na subnutrição, obrigados a ritmos frenéticos de produtividade, enquanto fabricam bens de luxo destinados aos shoppings e supermercados dos grandes centros urbanos capitalistas. 

O Mickey de pelúcia comprado na Disneilândia ou o tênis Nike adquirido na 5a Avenida de Manhattan, apesar dos consumidores não terem consciência disso (será que ignoram de propósito? Tapam os próprios ouvidos? Vendam os próprios olhos?), são fabricados através das mais sórdidas opressões impostas às populações despossuídas de Bangladesh, da Indonésia, da China... É contra isso que os personagens do filme alemão Edukators protestam, panfletando nas lojas, na tentativa de disseminar a consciência de que um tênis vendido por 200 dólares foi produzido por jovens escravizados que receberam só alguns centavos de salário. Não é outra a fonte dos colossais lucros das mega-corporações: elas só ficam ricas pela miséria que impõe a seus empregados, pela mais-valia que arrancam deles, pela discrepância entre os salários que pagam e os preços que cobram... Os escravagistas não morreram: agora eles são donos do Wal-Mart.


Sociólogos, nos últimos anos, insistem em apontar que a globalização tem gerado a expansão epidêmica do “precariado”, isto é, a “multiplicação dos empregos precários e sub-remunerados” (BOURDIEU: Contrafogos, 2001, p. 51). O trabalhador, sob o neoliberalismo, tem a “impressão de que não é insubstituível e que o seu emprego é de certa forma um privilégio, e um privilégio frágil e ameaçado. (...) A concorrência pelo trabalho, às vezes tão selvagem quanto a praticada pelas empresas, está na raiz de uma verdadeira luta de todos contra todos, destruidora de todos os valores de solidariedade e humanidade, e às vezes de uma violência sem rodeios.” (op cit, p. 121-123)

Ao mesmo tempo, os donos do capital procuram reduzir-nos a passivos espectadores dos fatalismos econômicos: a “ralé”, dizem eles, não tem controle algum sobre este novo deus chamado de Mão Invisível, que Galeano descreve como uma divindade furibunda como um novo Jeová: deus severo e propagador de medos, deus das dívidas e das austeridades. Os únicos “profetas” que sabem conversar com o deus dos mercados e sua máquina infernal são, é claro, os “peritos”: que o cidadão normal não se meta com isso!

Sabe-se que um dos procedimentos prediletos das grandes empresas, na era da globalização, é abrir filiais no chamado 3º Mundo, onde encontram mão-de-obra mais barata para ser explorada. Longe de ter aposentado o processo de arrancar lucros através do que Marx chamava de mais-valia, o neoliberalismo globalizado, em sua sanha sanguessuga, prossegue explorando o trabalho em vastíssima escala, com uma “compulsão em servir aos próprios interesses financeiros acima de tudo” (BAKAN: The Corporation, 2007, pg. 76). As riquezas são produzidas com o suor mau-pago do precariado e as consequências ecológicas desastrosas do produtivismo enlouquecido são "externalizadas": que as próximas gerações se virem, como puderem, com a poluição e o aquecimento global! O lucro de hoje gera as catástrofes de amanhã. 

O documentarista Michael Moore, em um de seus filmes, convidou o presidente da Nike a visitar com ele as subsidiárias de sua mega-corporação na Indonésia, onde “o objetivo da empresa era maximizar o lucro que podia espremer de meninas e mulheres jovens que costuram roupas para a Nike em fábricas que exploram a mão-de-obra barata em países em desenvolvimento” (BAKAN: 78). Perplexo, descobre que o super-executivo, multi-bilionário, nunca tinha se dado ao trabalho de ir visitar a maioria de suas fábricas no Terceiro Mundo. Sua atitude, longe de ser excepcional, constitui a regra: as ordens que as grandes corporações emanam para o resto de suas filiadas subalternas se resumem quase a um ditame bem simples e infinitamente repetido como um mantra: “maximize productivity and profit at all costs!”

Aqueles que investigaram mais a fundo a realidade laboral nas fábricas da Nike e outras mega-corporações, como Charles Kernaghan, diretor do Comitê Nacional do Trabalho norte-americano, descobriu uma realidade que não difere muito dos campos de concentração para trabalho forçado que Arendt descreve como característicos do totalitarismo stalinista:

"A típica fábrica que Kernaghan visita em países como Honduras, Nicarágua, China e Bangladesh é cercada por arame farpado. Atrás das portas trancadas, em sua maioria estão jovens mulheres supervisionadas por guardas que as agridem e as humilham por qualquer motivo e que as demitem se o teste de gravidez obrigatório for positivo. Cada trabalhadora repete a mesma ação talvez 2.000 vezes por dia. Trabalham sob luzes dolorosamente brilhantes, em turnos de 12 a 14 horas diárias, em fábricas abafadas, com poucos banheiros e acesso restrito à água (para reduzir a necessidade de mais pausas para usar o banheiro). Trabalham até 25 anos de idade, mais ou menos, ponto em que são demitidas porque estão acabadas e desgastadas. A vida delas já chegou ao fim, e a companhia as substitui por outra safra de jovens..." (BAKAN: p. 79)

As mega-corporações trans-nacionais, instituições dominantes no cenário do capitalismo neoliberal, foram responsáveis por inúmeras catástrofes ambientais, como o desastre de Bophal na Índia e os vazamentos de petróleo da Chevron no Equador (desgraça esmiuçada no documentário “Crude”). Também não faltam episódios inglórios de empresas colaborando com regimes fascistas ou totalitários: um dos casos mais conhecidos, descrito por Edwin Black em A IBM e o Holocausto, é o acordo entre a mega-empresa de informática e a Alemanha hitlerista, que durou pelo menos até 1941, e que consistia no fornecimento, pela IBM, de “máquinas tabuladoras Hollerith, ancestrais dos computadores, que usavam cartões perfurados para fazer seus cálculos” (BAKAN: 105). 

Segundo o autor, “o escritório central em Nova York tinha toda consciência de tudo que estava acontecendo com suas máquinas no III Reich... de que estavam sendo usadas em campos de concentração e que os judeus estavam sendo exterminados...” (idem). Outros exemplos são a General Motors, que era dona da Opel, empresa que contribuiu com armamentos e aviões para a Luftwaffe, e a Coca-Cola, que criou a Fanta - o refri-Nazi - especialmente para o mercado alemão em 1939. “A assistência oferecida aos nazistas por corporações norte-americanas pode parece chocante, mas não devemos nos esquecer de que hoje em dia muitas corporações norte-americanas têm negócios frequentes com regimes totalitários ou autoritários, mais uma vez porque é lucrativo fazê-lo” (BAKAN: 106)

           
Como resume Bourdieu: Nas empresas, é a busca do lucro a curto prazo que orienta todas as escolhas, sobretudo a política de recrutamento, submetido ao imperativo da flexibilidade e da mobilidade. (…) Com a ameaça constante de 'enxugamento', toda a vida dos assalariados está colocada sob o signo da insegurança e da incerteza. (…) Certas empresas de televendas ou de telemarketing aperfeiçoaram um regime que, do ponto de vista da produtividade, do controle e da vigilância, dos horários de trabalho e da ausência de carreira, é um verdadeiro taylorismo dos serviços. (…) O protótipo dos operários especializados da 'nova economia' é sem dúvida a caixa de supermercado, convertida pela informatização do registro de preços em verdadeira operária de linha, cujas cadências são examinadas, cronometradas, controladas, e cujo emprego do tempo varia ao sabor das variações do fluxo de clientes; ela não tem a vida nem o estilo de vida de uma operária de fábrica, mas ocupa uma posição equivalente na nova estrutura. (BORDIEU: 2001, pg. 49-51)
De modo que é legítima a suspeita de que o neoliberalismo têm vínculos íntimos com estratégias imperialistas de dominação e que mantêm vivos os métodos de opressão da classe trabalhadora denunciados em tanta minúcia por Karl Marx, que assim descrevia o processo de criação do capital:

 “O capital veio ao mundo suando sangue e lama por todos os poros […]. Em geral, a escravidão velada dos operários assalariados na Europa precisava, como pedestal, da escravatura notória no Novo Mundo. (…) O tesouro capturado fora da Europa, diretamente por pilhagem, escravização, assassinato seguido de roubo, refluiu para a mãe pátria e transformou-se em capital.” (KARL MARX, Ouevres Completes, vol. II, Le Capital, tomo 1, seção VIII. Paris: Gallimard. Bibliotèque de la Pléiade.)

O neoliberalismo, visto a partir da perspectiva daqueles que o sofrem e não dos que o impõe, ou seja, enxergado a partir do chamado “3º Mundo” ou dos “países subdesenvolvidos”, equivale a uma continuação transformada do colonialismo. Eduardo Galeano, em sua análise da América Latina, relembra a história:

"A divisão internacional do trabalho significa que alguns países se especializam em ganhar e outros em perder. Nossa comarca no mundo, que hoje chamamos América Latina, foi precoce: especializou-se em perder desde os remotos tempos em que os europeus do Renascimento se aventuraram pelos mares e lhe cravaram os dentes na garganta. (…) Nossa riqueza sempre gerou nossa pobreza por nutrir a prosperidade alheia: os impérios e seus beleguins nativos. Na alquimia colonial e neocolonial o ouro se transfigura em sucata, os alimentos em veneno. Potosí, Zacatecas e Ouro Preto caíram de ponta-cabeça da grimpa de esplendores dos metais preciosos no fundo buraco dos socavões vazios, e a ruína foi o destino do pampa chileno do salitre e da floresta amazônica da borracha; o nordeste açucareiro do Brasil, as matas argentinas de quebrachos ou certos povoados petrolíferos do lago de Maracaibo têm dolorosas razões para acreditar na mortalidade das fortunas que a natureza dá e o imperialismo toma.” (GALEANO, As Veias Abertas da América Latina….)
O próprio Foucault remete au passant ao imperialismo quando lembra que “os sucessores de List estalebeceram como princípio que a economia liberal não podia ser e na verdade não era mais que um instrumento tático ou estratégia nas mãos de certo número de países para obter uma posição hegemônica e politicamente imperialista sobre o resto do mundo.” (FOUCAULT: Nascimento da Biopolítica, 2008, p. 147)

Segundo Rosa Luxemburgo, “o imperialismo é a expressão política da acumulação de capital em sua competição pela posse do mundo não-capitalista” (LUXEMBURGO: 1923, p.  361). A doutrina da “expansão”, tão conectada ao imperialismo, teria nascido, segundo Arendt, desta concentração extrema de capital nas mãos da burguesia:


“Expansion appeared first as the outlet for excess capital production and offered a remedy, capital export. The tremendously increased wealth produced by capitalist production under a social system based on maldistribution had resulted in 'oversaving' – that is, the accumulation of capital which was condemned to idleness within the existing national capacity for production and consumption. (…) When capitalism had pervaded the entire economic structure and all social strata had come into the orbit of its production and consumption system, capitalists clearly had to decide either to see the whole system collapse or to find new markets, that is, to penetrate new countries” (ARENDT: 1948, p. 197).

Esta corrida dos capitalistas para penetrar novos países, longe de ser ato polido realizado com gentileza e vaselina, foi em grande parte dos casos um estupro. Para levar a sério a sugestão de Nietzsche de que a filosofia deve ser uma “escola da suspeita”, resta-nos desconfiar: o neoliberalismo não seria a nova face do imperialismo, a nova máscara por detrás da qual ele se esconde, a hipocrisia mais recente que ele pôde forjar em seu ímpeto invasionista? O caso do Chile de 1973 é paradigmático...


SIGA VIAGEM...


THE NEW RULERS OF THE WORLD
Documentário de John Pilger, de 2001, completo e legendado.
Inclui análise minuciosa do "Caso Indonésia": país que foi considerado
"aluno modelo" pelo Banco Mundial e cuja economia quebrou em 1998,
com as mais desastrosas consequências para sua população.


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Documentário de Giovanni Alves sobre o precariado português. 17 min.

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